O Real e o Imaginário: Memória e Identidade no Figurado de Barcelos

O Figurado é a designação do produto do trabalho efetuado pelos artesãos barristas que se dedicam a modelar peças à mão, as quais na sua essência representam a realidade ou o imaginário das suas vidas quotidianas.

Os especialistas distinguem dois tipos de Figurado: sortido e estatuária. Figurado Estatuária (ou simplesmente Figurado) é a designação dada às peças de estatuária de expressão popular produzidas quase integralmente à mão. Figurado sortido diz respeito às pequenas peças feitas em grandes quantidades com recurso a moldes.

Não é possível datar o início da produção do figurado sortido, mas sabe-se que em Barcelos era muito abundante entre o início e meado do século XX. As peças possuíam uma característica muito marcante: quase todos os pequnos objetos tinham um assobio, sendo vendidos nos mercados e feiras como brinquedos, objetos de recreação.

O Figurado Estatuária (a partir de agora usar-se-á apenas a designação Figurado) remontará, pelo menos, aos finais do século XVI, havendo notas de que o Frei Bartolomeu dos Máritires se terá referido aos bonecos de barro, durante o concílio de Trento, tese que Lapa Carneiro questiona.

No seu ofício, de mãos ágeis, os barristas (e)laboram a reinvenção dos utensílios deo quotidiano em brinquedos ingénuos e figura candidamente maliciosas. Mas o Figurado é também essa outra “arte” de dimensão simbólica que exorciza mitos, lendas e medos, e eleva o artesanato em barro a uma dimensão bipolar que vagueia entre o “divino” e o “demoníaco”.

Personagem dessa tensão entre o profano e o sagrado, Rosa Ramalho, que um dia “encontrou-se com os monstros da mitologia popular”, é a artesã mais carismática da região oleira de Barcelos. Até meados do século XX, o Figurado era visto como uma arte menor. Mas com Ramalho, a peça/brinquedo deu lugar ao objeto de culto das elites citadinas.

E se Rosa – nossa e do mundo – é simbolo da capacidade criadora de um povo, o Galo de Barcelos é icone de uma certa portugalidade. De pequinino com assobilo (até à 1ª metade do século XX), a grande, colorido, altaneiro e vaidoso, feito à mão ou com a ajuda da roda de oleiro, o Galo corre mundo e eleva o nome de Barcelos e de
Portugal.

Este ofício de verga e modelar o barro à (des)medida imaginação dos barristas remonta tão longe como a profundidade das crateras esventradas na terra de onde os barreiristas extraem a sua matéria prima.

Lá longe, dos incógnitos que sedimentaram a “arte” e dos quais a história dos homens não registou nome, nem eira nem beira, até aos dias do amanhã que se vislumbra nas novas gerações, os barristas de Barcelos já foram Ramlho, Esteves, Baraça, Mistério, Sineta e Côto.

Estes, oficialmente registados, foram baús de tradição e saber que deixaram os seus familiares e conterrâneos a arte que tinham herdado do saber dos tempos!

E assim nasceram e cresceram mais Baraças, Cotas, Ramalho, Mistérios, Sapateiro, Macedo e Morgado. E assim se polvilhou e enriqueceu a região oleira de Barcelos de uma vasta e rica artesania.

Hoje, no horizonte vislumbram-se os herdeiros de todo esse caldo social e cultural: Pias, Ferreiras, Farias, Dias, Macedo, Oliveira, a mais nova geração de barristas.

E é assim que de anónimos bonecreiros, a artesãos de marca e certificação garantida, de todos eles se fez este modo de vida que reinventa a tradição e expressa as memórias e a identidade cultural da região de Barcelos.

Algumas figuras crescem, por altua ou para as festa. Surgem cabeçudos e gigantones que, acompanhados por músicos, animam e criticam, nesta velha tradição popular minhota. São coisas do barro. “Estas figuras têm a utilidade lúdica de olhar, jogar e reconstituir situações- As bandas de música e os coretos remetem para o ouvir música e dançar”. Os mias velhos procuram passar aos mais novos esta vontade transmissão de saber, as histórias de cada peça encenada, a transmissão dos mitos, a sua recriação, “inventando o que não existe senão através da imaginação”. O olhar sobre o quotidiano, os entes imagináveis, uma certa comédia humana denunciam “uma consciência sublime onde uma miséria de séculos encontrou forças para não sucumbir transfigurando-a em consciência activa, em destino assumido.”

Pelo que se disse, mas sobretudo pelo não dito, neste seu singular tempo de reabertura, o Museu de Olaria – lugar de memórias, sítio de vidas , oficina do imaginário – apresenta a exposição O Real e o Imaginário: Memória e Identidade no Figurado de Barcelos.